Cardeal Burke: a Liturgia "não é invenção humana, mas um presente de Deus para nós"
Em
entrevista exclusiva a Zenit, o Cardeal Burke fala da importância de
estudar a liturgia, da sua relação com a causa pró-vida e dos abusos
litúrgicos.
Os abusos litúrgicos que se seguiram às reformas do Concílio Vaticano
II estão "estreitamente relacionados" com uma grande porção de
corrupção moral que existe no mundo hoje, diz o cardeal Raymond Leo
Burke.
Em uma entrevista exclusiva a Zenit nos bastidores de "Sacra Liturgia
2013", uma grande conferência internacional sobre liturgia ocorrida em
Roma no final de junho, o norte-americano mais influente do Vaticano diz
que liturgias pobres também levaram a "uma leviandade na catequese" que
tem "impactado" e deixado gerações de católicos mal preparadas para
lidar com os desafios de hoje.
Em uma ampla discussão, o Cardeal Burke, que é Prefeito do Supremo
Tribunal da Assinatura Apostólica, também explica a importância da lei
litúrgica, como o Papa Francisco aborda a liturgia e porque a sagrada
liturgia é vital para a nova evangelização.
ZENIT: Eminência, quais eram suas esperanças para essa conferência?
Cardeal Burke: Minha esperança para a conferência
era um retorno ao ensinamento do Concílio Ecumênico Vaticano II sobre a
sagrada liturgia. Além disso, um aprofundamento e apreciação da
continuidade do ensinamento praticado na sagrada liturgia durante a
história da Igreja, e que também se reflete no Concílio Ecumênico
Vaticano II – algo que foi obscurecido depois do Concílio. Eu acredito
que, em grande parte, isso foi alcançado.
ZENIT: Nós estamos saindo desse período agora?
Cardeal Burke: Sim, já o Papa Paulo VI, depois do
Concílio, de uma maneira bem intensa, e depois João Paulo II e Papa
Bento XVI, trabalharam diligentemente para restaurar a verdadeira
natureza da sagrada liturgia como o presente de adoração dado por nós a
Deus e que nós prestamos a Deus da maneira que Ele nos ensina a adorar.
Então, não é invenção humana, mas um presente de Deus para nós.
ZENIT: Como é importante um bom entendimento da liturgia na Igreja de hoje. Como isso pode ajudar a evangelização?
Cardeal Burke: Para mim, é fundamental. É a mais
importante área da catequese: entender a adoração devida a Deus. Os três
primeiros mandamentos do Decálogo têm a ver com o relacionamento
correto com Deus, especialmente no que diz respeito à adoração. É só
quando nós entendemos nossa relação com Deus na oferta da adoração que
nós também entendemos a ordem correta de todos os outros relacionamentos
que nós temos. Como o Papa Bento XVI disse em seu belo magistério sobre
a sagrada liturgia, o qual ele expressou com tanta frequência, consiste
nessa conexão entre adoração e conduta correta, adoração e lei,
adoração e disciplina.
ZENIT: Alguns argumentam que a liturgia tem mais a
ver com estética, e não é tão importante quanto, vamos dizer, boas obras
feitas com fé. Qual a sua visão desse argumento?
Cardeal Burke: É um erro de concepção comum.
Primeiro, a liturgia tem a ver com Cristo. É Cristo vivo em Sua Igreja,
Cristo glorioso vindo ao nosso meio e agindo em nós por meio dos sinais
sacramentais, para nos dar o presente da vida eterna para nos salvarmos.
É a fonte de qualquer obra verdadeiramente caridosa que realizamos,
qualquer boa obra que fazemos. Então, a pessoa cujo coração é cheio de
caridade e quer fazer boas obras vai, como Madre Teresa, oferecer seu
primeiro propósito à adoração de Deus, a fim de que, quando ele for
oferecer caridade para as pessoas pobres ou necessitadas, seja no nível
de Deus, e não em um nível humano.
ZENIT: Alguns também dizem que estar preocupado com
as normas litúrgicas é ser extremado legalista, que é um sufocamento do
espírito. Como uma pessoa pode responder isso? Por que devemos nos
preocupar com as normas litúrgicas?
Cardeal Burke: A lei litúrgica nos disciplina, a fim
de que tenhamos a liberdade de adorar a Deus; de outro modo, somos
sequestrados – nós somos as vítimas ou escravos ou das nossas ideias
individuais, ideias relativas disto ou daquilo, ou da comunidade ou de
qualquer outra coisa. Mas a lei litúrgica salvaguarda a objetividade da
adoração divina e prepara esse espaço entre nós, essa liberdade de
adorar a Deus como Ele quer, para que, então, estejamos certos de não
estarmos adorando a nós mesmos ou, ao mesmo tempo, como diz Aquinate,
falsificando de algum modo o culto divino.
ZENIT: Ela oferece uma espécie de modelo?
Cardeal Burke: Exatamente, é o que disciplina faz em todo aspecto de nossas vidas. A menos que sejamos disciplinados, então não somos livres.
ZENIT: Como um bispo diocesano nos Estados Unidos,
qual o estado em que o senhor encontrou a liturgia nas paróquias das
quais o senhor esteve encarregado de cuidar? Quais são, na sua visão, as
prioridades para a renovação litúrgica na vida diocesana hoje?
Cardeal Burke: Eu encontrei, é claro, vários
aspectos bonitos – em ambas as dioceses nas quais servi –, como um forte
senso de participação da parte dos fiéis. O que eu também encontrei
foram algumas sombras, como o Papa João Paulo II as chamava: a perda da
fé na Eucaristia, a perda da devoção eucarística e certos abusos
litúrgicos. E, como bispo diocesano, eu precisava enfrentá-los e eu fiz o
melhor que pude. Mas, ao enfrentá-los, você sempre tenta ajudar tanto o
padre quanto os fiéis a entenderem as razões profundas para a
disciplina da Igreja, as razões pelas quais certo abuso não somente não
ajuda no culto divino, como, de fato, o bloqueia e o corrompe.
ZENIT: É dito que amar a sagrada liturgia e ser
pró-vida andam juntos, que aqueles que adoram corretamente são mais
dados a querer trazer crianças para o mundo. Você poderia explicar por
que é assim?
Cardeal Burke: É na sagrada liturgia, acima de tudo,
e particularmente na Sagrada Eucaristia, que nós olhamos para o amor
que Deus tem por cada vida humana sem exceção, sem limites, começando
pelo primeiro momento da concepção, porque Cristo derramou sua vida,
como ele disse, por todos os homens. E lembre-se que Ele nos ensina que
tudo o que tivermos feito ao menor dos nossos irmãos, nós fazemos
diretamente a Ele. Em outras palavras, Ele se identifica a si mesmo no
sacrifício eucarístico com cada vida humana. Então, se por um lado, a
Eucaristia inspira uma grande reverência, respeito e cuidado pela vida
humana, ao mesmo tempo inspira uma alegria entre aqueles que são casados
de procriar, de cooperar com Deus em trazer uma nova vida humana a este
mundo.
ZENIT: "Sacra Liturgia" foi sobre celebração
litúrgica, mas também formação. Qual a base de formação litúrgica que
precisamos em nossas paróquias, dioceses e particularmente em nossos
seminários?
Cardeal Burke: A primeira importante lição que
precisa ser ensinada é a de que a sagrada liturgia é uma expressão do
direito divino de receber de nós o culto que lhe é devido, e que emana
de quem nós somos. Nós somos criaturas de Deus e, então, o culto divino,
de um modo bem particular, expressa ao mesmo tempo a infinita majestade
de Deus e também nossa dignidade como as únicas criaturas na terra
capazes de prestar-lhe culto, de, em outras palavras, elevar a Ele
nossas mentes e corações em louvor e adoração. Essa seria a primeira
lição. Depois, estudar com atenção como os ritos litúrgicos se
desenvolveram ao longo dos séculos e não ver a história da Igreja como
uma espécie de corrupção daqueles ritos litúrgicos. Neste sentido, a
Igreja, no decorrer do tempo, chegou a um entendimento cada vez mais
profundo da sagrada liturgia e expressou isso de várias formas, através
das vestes sagradas, dos vasos sagrados, da arquitetura sacra – até o
cuidado com os paramentos utilizados na Santa Missa. Todas essas são
expressões da realidade litúrgica e devem ser cuidadosamente estudadas,
e, é claro, então, deve-se estudar a relação da liturgia com os outros
aspectos das nossas vidas.
ZENIT: Você é conhecido por celebrar a Forma
Extraordinária do Rito Romano. Por que o Papa Bento XVI tornou-a
livremente disponível e que papel isso tem na Igreja do século XXI?
Cardeal Burke: O que o Papa Bento XVI viu e
experimentou, também por aqueles que vinham a ele, e que estavam muito
ligados ao que chamamos hoje de Forma Extraordinária – a Missa
Tradicional – foi que, nas reformas introduzidas depois do Concílio,
ocorreu uma incompreensão fundamental: nomeadamente, as reformas foram
feitas com a ideia de que havia uma ruptura, de que o modo como a Missa
era celebrada até o tempo do Concílio era, de alguma maneira,
radicalmente defeituosa e que deveria haver uma mudança violenta, uma
redução nos ritos litúrgicos e até na linguagem usada, em todos os
aspectos. Então, a fim de restabelecer a continuidade, o Santo Padre deu
ampla possibilidade para a celebração dos ritos sagrados tal como eram
celebrados até 1962, e então expressou a esperança de que através destas
duas formas do mesmo rito – é tudo o mesmo rito romano, pode ser
diferente, mas é a mesma Missa, o mesmo Sacramento da Penitência e assim
por diante – poderia haver um mútuo enriquecimento. E essa continuidade
poderia ser mais perfeitamente expressa no que alguns chamaram de
"reforma da reforma".
ZENIT: Papa Francisco é uma pessoa diferente de
Bento XVI em vários aspectos, mas é difícil de acreditar que há
diferenças substanciais entre eles na importância da sagrada liturgia.
Existem algumas diferenças?
Cardeal Burke: Eu não vejo nada disso. O Santo Padre
claramente não teve a oportunidade de ensinar com autoridade sobre a
sagrada liturgia, mas nas coisas que ele disse sobre a sagrada liturgia
eu vejo uma perfeita continuidade com o Papa Bento XVI e com sua
disciplina, e é isso o que o Papa Francisco está fazendo.
ZENIT: Essa conferência está refletindo sobre os 50
anos desde a abertura do Concílio Vaticano II, e, há 50 anos, em
dezembro, essa constituição sobre a sagrada liturgia foi promulgada.
Você já mencionou como a renovação litúrgica não foi como o Concílio
desejava, mas como você vê o progresso das coisas no futuro? O que você
prevê, especialmente entre os jovens?
Cardeal Burke: Os jovens estão voltando atrás agora e
estudando ambos os textos do Concílio Ecumênico Vaticano II com os seus
sérios textos sobre teologia litúrgica que permanecem válidos ainda
hoje. Eles estão estudando os ritos como eles eram celebrados, se
esforçando para entender o significado e vários elementos do dito e há
um grande entusiasmo e interesse nisso. Tudo isso, eu acredito, é
direcionado a uma experiência mais intensa da presença de Deus conosco
na sagrada liturgia. Esse elemento transcendente foi mais tristemente
perdido quando a reforma após o Concílio foi, por assim dizer, enviesada
e manipulada para outros propósitos – aquele senso de transcendência da
ação de Cristo por meio dos sacramentos.
ZENIT: Isso reflete a perda do sagrado na sociedade como um todo?
Cardeal Burke: Reflete, de fato. Para mim, não há
dúvidas de que os abusos na sagrada liturgia, a redução da sagrada
liturgia a uma espécie de atividade humana, está estreitamente
relacionada a muita corrupção moral e a uma leviandade na catequese que
tem impactado e deixado gerações de católicos mal preparadas para lidar
com os desafios do nosso tempo. Você pode ver isso em toda a gama da
vida da Igreja.
ZENIT: O Papa Bento disse certa vez que as crises que vemos na sociedade hoje podem ser associadas aos problemas na liturgia.
Cardeal Burke: Sim, ele estava convencido disso e eu
posso dizer que também estou. Era, é claro, mais importante que ele
estivesse convencido disso, mas eu acredito que ele estava absolutamente
correto.
Origem: http://padrepauloricardo.org/blog/cardeal-burke-a-liturgia-nao-e-invencao-humana-mas-um-presente-de-deus-para-nos
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